Fei Hok Phai em Niterói- 2/2
Após assistir um treino de kung fu e ficar muito impressionado com a elegância, a velocidade e a potência dos movimentos e dos chutes, finalmente iniciei meus treinos na arte.
No ano de 1985, "Índio" (chamávamos Valdemir Machado pelo seu apelido ou pelo termo "Shiren", professor) dava aulas em duas academias no bairro de Icaraí: "Moksha" (rua Lopes Trovão, 117) e "AquaFish" (rua Lemos Cunha, 355).
Não tenho uma memória precisa do local onde comecei a treinar, se foi no "Moksha" ou no "AquaFish". Nessa época eu estudava de noite na Universidade Gama Filho, no bairro da Piedade, zona norte do Rio de Janeiro. Estava iniciando o curso de Comunicação Social que interrompi no ano seguinte. As aulas da Faculdade começavam as 19 horas e iam até as 22 horas. O percurso de Icaraí até o bairro da Piedade era feito em um onibus fretado por alunos da Gama Filho e geralmente demorava 1 hora no trajeto. Os horários das aulas no "Moksha" eram de tarde, e coincidiam com o horário que eu pegava o ônibus para a Gama Filho. No "AquaFish" tinham dois horários de treino. Um horário noturno (quando eu estava na Faculdade) e outro diurno, não muito cedo, em torno de 9:00 ou 10:00.
Por exclusão, o certo é que eu iniciei os treinos no AquaFish. O foco da academia era natação infantil, mas também oferecia outras atividades esportivas: ginástica localizada, jazz, karate, capoeira e kung fu. Funcionava em um clube da Associação Hebraica e o local era bastante amplo. O salão de treino era enorme, em torno de 100 m². Com várias turmas de natação infantil acontecendo durante toda a manhã e tarde a animação infantil sempre tomava conta do local.
A turma da manhã era pequena e os treinos eram tranquilos. O que mais me lembro desse período inicial de prática era minha extrema dificuldade em realizar os movimentos novos e a minha falta de flexibilidade. "Esse tal de kung fu tem uns movimentos legais mas muito estranhos", costumava pensar.
No ano seguinte, após interromper o curso de Comunicação Social, passei a treinar no "Moksha". Não lembro o motivo exato da mudança de local e horário. Uma possibilidade é que a turma da manhã fosse muito pequena e Índio tenha fechado o horário; outra possibilidade é que eu tenha achado melhor treinar de tarde no "Moksha", pois ia iniciar um curso de preparação para exame vestibular matutino.
Fato é que dei continuidade aos meus treinos no "Moksha", que não era propriamente uma academia de ginástica. O "Moksha" era uma espécie de centro cultural. Funcionava em um estreito prédio de 3 pavimentos. No andar térreo ficava uma pequena recepção; um estreito corredor nos conduzia a uma escadaria mais estreita que subia direto para o terceiro andar, onde ficava o salão de treino. Essa estreiteza da recepção, do corredor de entrada e da escadaria era resultado do compartilhamente do andar térreo e do segundo pavimento com uma loja. Originalmente o prédio era uma casa, na qual residia a família da Ana (que além de administrar o local também dava aulas de yoga). Após uma reforma estrutural, no local passou a funcionar uma loja e o "Moksha". Atualmente no mesmo local funciona o "Aizen" (o prédio azul na foto abaixo), um espaço de treino para Aikido e Yoga. Ana Lucia Felippe e seu marido, Antonio Augusto Felippe (professor de Aikido) coordenavam as atividades (em 2024 continuam coordenando).
O termo "Moksha" tem origem no sânscrito antigo com o sentido de "liberação", e de maneira bem ampla faz referência à libertação do eterno ciclo de (re)nascimento e morte ao qual todos estaríamos confinados de acordo com o pensamento Vedanta.
No "Moksha" de Icaraí aconteciam diversas atividades: yoga, karate, aulas de reforço escolar, terapias diversas, shiatsu, aikido e kung fu. Pelo que me lembro de conversas com Ana, o local foi idealizado pelo irmão dela. A idéia era ser um centro de difusão dos ideais daquilo que na década de 1980 chamávamos de "Nova Era".
A origem da "Nova Era" pode ser localizada no movimento de contracultura da década de 1960. Duas organizações são geralmente indicadas como os principais locais de transformação e difusão de um amplo movimento cultural em uma mistura algo eclética de crenças e práticas espiritualistas: Esalen Institut (na Califórnia, USA) e Findhorn Foundation (Escócia, UK).
O "Moksha" era - e o "Aizen" continua sendo - um local bastante tranquilo e agradável para a prática de atividades corporais. O salão de treino no terceiro andar era uma sala pequena e coberta por tatames - posteriormente esta sala foi ampliada, incorporando uma varanda que existia e tornando-se o salão de treinos atual (foto abaixo). O silêncio local contrastava com os ruídos vindos da vizinhança e da rua.
Até hoje mantenho contato com alguns companheiros de treino de kung fu deste período: Adriana Facina e Pedro Rocha foram alguns que iniciaram seus treinos no "Moksha" e continuaram treinando por muitos anos. Não lembro de todos os alunos que treinaram no "Moksha" (na verdade me lembro de poucos), mas lembro particularmente de um aluno - Laerte -, fã de Bruce Lee, que colecionava todas as informações que encontrava sobre o pequeno dragão e suas estratégias marciais.
Nessa época o "Shiren" usava uma camisa de treino com duas imagens estampadas em silk-screen: na frente um tigre saltando e nas costas uma garça voando. Eu gostava bastante dessa composição, mas me identificava particularmente com o tigre saltando. Afinal, uma garça voando não era uma imagem que eu associava com o vigor e a habilidade dos movimentos que praticava.
Foi quando o "Shiren" nos informou que estava preparando uniformes de treino: calça preta de helanca (que é um material altamente elástico) e uma t-shirt branca de algodão com as "imagens" em silk-screen. Aguardei ansioso a chegada da camisa com as "imagens": o tigre e a garça! .. principalmente com a imagem do tigre saltando. Quando as camisas chegaram, tive uma grande surpresa ao constatar que o tigre havia sido substituído por um pequeno símbolo do "Yin-Yang" em vermelho.

"Cadê o tigre?", foi minha pergunta ao "Shiren". Foi neste momento que fiquei que o tigre era do uniforme da "Academia Técnicas" de São Paulo. O animal símbolo do Fei Hok Phai (estilo da garça voando!) era uma "garça voando" estampada nas costas com os ideogramas correspondentes. Fiquei pasmo! "Como assim uma garça?", pensei. Após alguns reclames me resignei tristemente à nova descoberta. "Quem não tem tigre, caça com a garça!", fazer o que ne?
Realmente, naquela época não suspeitava que além da bicada com a ponta dos dedos unidos e do grito agudo ("Hók"!), a técnica da garça está associada com caneladas, cotoveladas, joelhadas e bloqueios com os antebraços; com as esquivas e os saltos.
Em 1986 voltei a treinar no "AquaFish", com a camisa da garça e no horário noturno. A turma era numerosa, muitos jovens, e varios já treinavam há mais tempo que eu. João (o karateca) era um deles. Sua namorada, Cristina, também praticava. Os irmãos Luciano, Nemo e Vicente Judice; Juan e Oscar Lee (dois "coreanos" exímios chutadores); Luciano "Máquina"; Sergio Del Picchia e seu filho Marquinhos; Jorge e seu irmão; além de muitos outros.
(Na foto: Nemo Judice e Juan Lee no Aqua Fish)
Nessa época, fizemos várias demonstrações públicas: em eventos de artes marciais; em campeonatos de dança; em shopping center; em aniversário (!); em praças; em teatros. Nossas apresentações não eram no mesmo nível técnico dos professores paulistas. Mas, curtiamos as "roubadas" (era assim que chamávamos) que o "Índio" nos colocava. "Roubadas" principalmente por conta de nossa insegurança juvenil que se intensificava nas apresentações. Entretanto, o resultado dessas "roubadas" foi positivo. Não somente pelas divertidas memórias, mas sobretudo pela experiência em se expor publicamente, fora do ambiente seguro e familiar da academia.
No final do ano de 1987, um grupo de alunos que já treinavam há pelo menos três anos participaram do primeiro exame de faixa realizado em Niterói nas dependências do Clube de Regatas de Icaraí. Até essa época não usávamos faixa ou algum outro sinal indicativo do nível tecnico do praticante. Em Santo André SP isso era feito por uma composição de cores nas estampas da camisa dos praticantes e duas cores de faixa - vermelha e preta. Estampas e faixa na cor vermelha para os alunos e estampas na cor azul e faixa preta para os professores mais graduados. "Índio" sempre usava a faixa preta amarrada na cintura; algumas vezes usava a camisa de sua antiga academia de São Paulo, a "Academia Técnicas", outras usava a camisa da "Academia Tai-Chi" de Santo André e também usava a camisa de uniforme que ele mesmo fez. Nós usávamos apenas a camisa de treino com o simbolo e a garça estampados em vermelho, sem faixa.
Para realizar esse primeiro exame de faixa vieram alguns professores de São Paulo: Marcos Hourneaux (Marcão), Jair Lima, Nilson Alves das Neves e Valdir Machado (irmão do "Shiren"). Foram avaliados os seguintes alunos: eu, Luciano "Máquina", Juan Lee, Oscar Lee, Luciano Judice, Nemo Judice, Vicente Judice e Pedro Rocha.
Além de informações gerais sobre o estilo Fei Hok Phai, fomos principalmente avaliados na execução das rotinas técnicas, os "katis": "Lim Pou Chuan" (treinando punhos e bases) que é a primeira rotina no Fei Hok Phai; "Sam Sin Tui Tcha" (luta simulada das "três estrelas" - as famosas três batidas de braço que praticamos para condicionamento dos antebraços); "Tam Tui" (chute ou pernas de Tam - uma longa rotina composta por 12 sequências, que demoravamos cerca de seis meses para aprender e mais uns seis meses praticando); "Hok Chuan" (movimento da garça), a rotina que é a "marca registrada" do Fei Hok Phai - uma rotina que Juan Lee executava com uma qualidade impecável; geralmente parávamos de treinar para ver Juan treinar essa rotina; e o "Pou Sam Chuan" (movimentos dos punhos que partem montanha), uma rotina forte, veloz, com gritos vigorosos e composta por técnicas de tigre. Não me lembro se já praticavamos a rotina de bastão do Fei Hok Phai ("Lim Wan Kwan"). Acho que estávamos começando a praticar esta rotina e apresentamos os movimentos mas sem que os professores fizessem uma avaliação real de nossa técnica.
No geral, percebemos que não tínhamos muito conhecimento das informações básicas do estilo. Sabíamos contar até dez no dialéto cantones e com sotaque carioca. Sabíamos os nomes das rotinas mas sem muita certeza da tradução dos nomes ou da técnica que utilizavamos. Enfim, terminamos o exame com uma faixa vermelha para amarrar na cintura e com muita certeza do quanto que teríamos que aprender e treinar a mais .. e seria bastante coisa! Usei esta faixa vermelha até fazer meu exame para faixa preta em 1990.
Neste período do exame também fizemos algumas demonstrações, auxiliando os professores de São Paulo. Da primeira vez que eles vieram até Niterói trouxeram um grupo grande de alunos além de vários faixa-pretas do estilo para auxiliar nas demonstrações. Desta vez vieram apenas os quatro professores. O grupo de apoio éramos nós.
Me lembro especialmente de uma apresentação que fizemos no Teatro da UFF. Em algum momento me dei conta que o kung fu não era apenas mais uma atividade que eu praticava nas horas vagas, um "passa-tempo". O kung fu era uma prática que constituía o meu cotidiano (ao lado de outras) e que ocupava uma parte importante de minha vida.
Com o passar dos anos compreendi, a respeito das rotinas, que mais do que aprender técnicas de luta - que é um aspecto importante nas artes marciais -, o fundamental é o desenvolvimento e a manutenção de nossa percepção, consciência e inteligência corporal.
Deste período inicial do Fei Hok Phai em Niterói, ainda guardo alguns impressos com informações básicas que o "Shiren" nos deu. Um desses impressos é uma folha com ilustrações do próprio Valdemir com as posturas básicas de kung fu e os termos correspondentes. Utilizavamos esse material para decorar os nomes em "chinês" das posturas utilizadas nas rotinas técnicas.
No início de 1988 tivemos uma enorme e gratificante surpresa. No mês de Fevereiro, a Revista CombatSport publicou em cinco páginas (a Revista tinha 40 páginas), uma extensa matéria sobre o estilo Fei Hok Phai e seu fundador, Chiu Ping Lok. Ilustrada com várias fotografias do Mestre Lope em posturas de kung fu, além de fotos de sua academia, a matéria trazia informações básicas e preciosas sobre a história do Fei Hok Phai.
A Revista CombatSport era editada pela "N.A. Artes Gráficas Editora" com sede em São Paulo capital e estava em seu primeiro ano de atividade. Essa foi sua terceira publicação, com uma tiragem de 20 mil exemplares. Na capa da Revista, o Mestre Lope ocupava a parte central, em trajes de treino de kung fu, segurando um "Kwan Dao" (um longo bastão - "kwan" - com cerca de 1,80cm alongado por uma lâmina de facão - "dao" - em uma das estremidades). O "Kwan Dao" é uma das armas de maior prestígio entre os praticantes de Kung Fu. Também é conhecido como a "Lâmina do General", uma referência ao famoso guerreiro chinês "Kwan Kung" (160 - 210), herói protetor das artes marciais chinesas, sempre honrado nos altares ancestrais de suas escolas.
No próximo texto publicarei a integra desta matéria da CombatSport, acrescentando mais informações sobre o Fei Hok Phai e o Mestre Lope.
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